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Radicalismo e polarização na comunidade do autismo



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Nessa semana o termo "radicalismo" foi muito utilizado nas redes sociais, em especial envolvendo pessoas com autismo, profissionais e pais. A situação toda se deu, pois um adulto com autismo faria uma live com uma mãe de um rapaz com autismo. O adulto em questão queria debater o termo "sair do espectro", utilizado por essa mãe e por diversas outras pessoas, pois ele, assim como outros adultos com autismo, tem lutado contra o capacitismo e pela aceitação na neurodiversidade dentro da nossa sociedade brasileira. Essa mãe desistiu de participar do encontro e o adulto em questão realizou uma transmissão sozinho, apresentando dados de pesquisas científicas que sustentavam seus argumentos sobre o tema.


Pessoas com deficiência são protagonistas de movimentos que lutam pelos seus direitos há décadas. Desde a década de 1960 temos exemplos no mundo todo de como as pessoas com deficiência passaram a se unir em busca de direitos e igualdade dentro da sociedade. Foi então que surgiu o lema "Nada sobre nós, sem nós" (Nothing about us, without us). Esse trabalho incansável culminou em 1981, com um grande marco instaurado pela ONU, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que tinha como lema "Participação Plena e Igualdade".


Atualmente, passados mais de 60 anos do início desta grande luta, as pessoas com deficiência ainda encontram dificuldade em serem ouvidas e respeitadas na sociedade. Os casos de radicalismo e polarização que ocorreram nessa semana tiveram início com a desistência da mãe em questão de participar da live (que ela mesma havia aceitado, previamente). Ela passou a realizar postagens de profissionais defendendo o termo "sair do espectro" e foi endossada por alguns desses profissionais, que por sua vez também realizaram comentários sobre o tema, em vídeos e textos nas redes sociais.


O fato de eles estarem mostrando suas opiniões (como as postagens mostram em seus títulos, "opinião de fulano") não seria um problema, afinal, todos temos direito a comunicar nossas ideias. O problema surge quando profissionais passaram a comentar que o adulto com autismo em questão (assim como as pessoas que concordam com ele) é um radical, não entende de autismo (lembrem que ele é um adulto AUTISTA e ativista na área), que é apenas um rapaz sem experiência de vida e que existe uma gama de pessoas que vão para as redes sociais apenas para falar besteiras (dentre outros argumentos agressivos que não acredito ser válido repetir).


O termo "radicalismo", faz referência a sistemas políticos ou doutrinas filosóficas que envolvem o individualismo (pensar em si, antes de pensar nos outros), a intransigência e inflexibilidade com ideias diferentes das suas. Então eu pergunto: quem foi radical nessa história?


Pessoas com deficiência têm o direito de apresentar seus descontentamentos por, justamente, serem os sujeitos que possuem uma deficiência, seja ela física, cognitiva, etc. Eles têm um lugar de fala muito importante e que precisa ser ouvido. Mães e pais de pessoas com deficiência também têm um lugar de fala, como cuidadores, responsáveis pelo desenvolvimento, saúde e segurança de seus filhos; portanto, também precisam ser ouvidos. Profissionais que atuam diretamente com pessoas com deficiência, muitas vezes, passam a vida estudando e se dedicando ao assunto e também têm seu lugar de fala, como especialistas.


A polarização (grupos se colocando em extremos-opostos uns dos outros) acontece justamente por conta do radicalismo: as pessoas acreditam que só o seu lugar de fala é válido, realizam ataques contra aquelas que discordam de suas opiniões, fogem do debate (algo comum e recorrente na nossa sociedade, infelizmente) e fazem uso de argumentos de força (tenho mais currículo que você, sei mais que você, sou mais velho, tenho mais experiência, você é um moleque), não apresentando dados concretos, científicos e objetivos, de porque suas opiniões são ou não válidas.


É muito triste que esses grupos se coloquem assim, em um embate, quando deveriam estar dialogando e construindo políticas públicas e conhecimento juntos. Aqui, uso meu lugar de fala como profissional que atua há 12 anos na intervenção com pessoas com autismo e outras deficiências, para afirmar que devemos aprender a ouvir. A ciência é contrária ao ego. Infelizmente, muitos profissionais falam o que for necessário para lucrar e para se colocar em um pedestal, como detentores de conhecimentos absolutos (irrefutáveis). Mas a vida e o próprio conhecimento não são assim. Precisamos de humildade para assumir quando erramos, ou quando algo ainda não é claro.


Não sabemos se a cura do autismo é possível, por exemplo, mas o que temos de certeza, agora, é que ele é um TRANSTORNO, não uma doença, e que acomete os indivíduos desde sua formação uterina, permanecendo com eles a vida inteira. Vide o DSM 5, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que afirma que:


"Características diagnósticas nucleares estão evidentes no período do desenvolvimento, mas intervenções, compensações e apoio atual podem mascarar as dificuldades, pelo menos em alguns contextos. Manifestações do transtorno também variam muito dependendo da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo espectro. [...]


Muitos adultos informam usar estratégias compensatórias e mecanismos de enfrentamento para mascarar suas dificuldades em público, mas sofrem com o estresse e os esforços para manter uma fachada socialmente aceitável. Quase nada se sabe sobre a fase da velhice no transtorno do espectro autista. [...]


Manifestações de prejuízos sociais e de comunicação e comportamentos restritos/repetitivos que definam o transtorno do espectro autista são claras no período do desenvolvimento. Mais tarde, intervenção e compensação, além dos apoios atuais, podem mascarar essas dificuldades pelo menos em alguns contextos. Os sintomas, entretanto, permanecem suficientes para causar prejuízo atual no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo."


Assim, por mais que as intervenções sejam capazes de minimizar as dificuldades causadas pelo transtorno de forma considerável, elas não são capazes de promover a cura, em nenhum momento o DSM 5 aborda esse termo ou o termo "sair do espectro". O que ocorre em alguns casos, é o mascaramento de comportamentos, o que, inclusive, pode gerar desconforto, estresse e depressão (a incidência de suicídio na população de pessoas com autismo é enorme!).


Encerro essa reflexão com o desejo de que toda a comunidade envolvida com as questões do autismo seja capaz de parar, ouvir e refletir, sobre quaisquer temas. Que nós sejamos capazes de mais empatia e respeito, pois todos somos passíveis de erros, mas radicalizar e polarizar uma discussão só traz efeitos negativos para as pessoas com autismo, suas mães/pais, e para nós, profissionais. Nossa motivação primeira deveria ser a luta por uma sociedade igualitária, mas nessa luta muitos tentam tirar proveito para engrandecimento e lucro pessoal. Que a ciência e os próprios atos dessas pessoas os desmascarem, que não haja endeusamento de nenhum membro dessa comunidade, pois esse ainda é um transtorno complexo, que pouco se sabe (e pouco se faz). A ciência é contrária às verdades absolutas. Meu apoio às pessoas com autismo, para que elas possam ter voz ativa dentro da sociedade e espaço para lutar pelos seus direitos.

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